Programa 10: Carlos do Carmo - Letras
publicado em 22/02/2019
Acima, a chamada para o Programa 10.
Pesquisa: Maria Júlia Franco de Souza e Beatriz Macedo Souza
1) Os Putos
Autores: Ary dos Santos / Paulo de Carvalho
Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto
Uma fisga que atira, a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser, criança
Contra a força dum chui, que é bruto
Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens
As caricas brilhando, na mão
A vontade que salta, ao eixo
Um puto que diz, que não
Se a porrada vier, não deixo
Um berlinde abafado, na escola
Um pião na algibeira, sem cor
Um puto que pede, esmola
Porque a fome lhe abafa, a dor
2) Fado da saudade
Autores: José Moreira / Fernando Pinto do Amaral
Nasce o dia na cidade, que me encanta
Na minha velha Lisboa, de outra vida
E com um nó de saudade, na garganta
Escuto um fado que se entoa, à despedida
E com um nó de saudade, na garganta
Escuto um fado que se entoa, à despedida
Foi nas tabernas de Alfama, em hora triste
Que nasceu esta canção, o seu lamento
Na memória dos que vão, tal como o vento
O olhar de quem se ama e não desiste
Na memória dos que vão, tal como o vento
O olhar de quem se ama e não desiste
Quando brilha a antiga chama, ou sentimento
Oiço este mar que ressoa, enquanto canta
E da Bica à Madragoa, num momento
Volta sempre esta ansiedade, da partida
Nasce o dia na cidade, que me encanta
Na minha velha Lisboa, de outra vida
Quem vive só do passado, sem motivo
Fica preso a um destino, que o invade
Mas na alma deste fado, sempre vivo
Cresce um canto cristalino, sem idade
Mas na alma deste fado, sempre vivo
Cresce um canto cristalino, sem idade
É por isso que imagino, em liberdade
Uma gaivota que voa, renascida
E já nada me magoa, ou desencanta
Nas ruas desta cidade, amanhecida
Mas com um nó de saudade, na garganta
Escuto um fado que se entoa, à despedida
3) Um homem na cidade
Autores: Ary Dos Santos / José Luís Tinoco
Agarro a madrugada como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada, uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade, de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade, com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada, colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada, um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada que mal me quis, que me quer bem.
4) Canoas do Tejo
Autor: Frederico de Brito
Canoa de vela erguida,
Que vens do Cais da Ribeira,
Gaivota, que andas perdida,
Sem encontrar companheira
O vento sopra nas fragas,
O Sol parece um morango,
E o Tejo baila com as vagas
A ensaiar um fandango
Canoa,
Conheces bem
Quando há norte pela proa,
Quantas docas tem Lisboa,
E as muralhas que ela tem
Canoa,
Por onde vais?
Se algum barco te abalroa,
Nunca mais voltas ao cais,
Nunca, nunca, nunca mais
Canoa de vela panda,
Que vens da boca da barra,
E trazes na aragem branda
Gemidos de uma guitarra
Teu arrais prendeu a vela,
E se adormeceu, deixá-lo
Agora muita cautela,
Não vá o mar acordá-lo
5) Por morrer uma andorinha
Autores: Francisco Viana / Frederico de Brito / João da Mata
Se deixaste de ser minha
Não deixei de ser quem era
Por morrer uma andorinha
Não acaba a primavera
Como vês não estou mudado
E nem sequer descontente
Conservo o mesmo presente
E guardo o mesmo passado
Eu já estava habituado
A que não fosses sincera
Por isso eu não fico à espera
De uma emoção que eu não tinha
Se deixaste de ser minha
Não deixei de ser quem era
Vivo a vida como dantes
Não tenho menos nem mais
E os dias passam iguais
Aos dias que vão distantes
Horas, minutos, instantes
Seguem a ordem austera
Ninguem se agarre à quimera
Do que o destino encaminha
Pois por morrer uma andorinha
Não acaba a primavera
6) Lisboa menina e moça
Autores: Ary dos Santos / Paulo de Carvalho
No castelo, ponho um cotovelo
Em Alfama, descanso o olhar
E assim desfaz-se o novelo
De azul e mar
À Ribeira encosto a cabeça
A almofada, na cama do Tejo
Com lençóis bordados à pressa
Na cambraia de um beijo
Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos veem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura
Cidade a ponto luz bordada
Toalha à beira mar estendida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida
No terreiro eu passo por ti
Mas da Graça eu vejo-te nua
Quando um pombo te olha, sorri
És mulher da rua
E no bairro mais alto do sonho
Ponho o fado que soube inventar
Aguardente de vida e medronho
Que me faz cantar
Refrão
Lisboa no meu amor, deitada
Cidade por minhas mãos despida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida
7) Julia Florista (com Mariza)
Autores: Joaquim Pimentel / Leonel Villar
A Júlia florista
Boémia e fadista, diz a tradição
Foi nesta Lisboa
Figura de proa da nossa canção
Figura bizarra
Que ao som da guitarra o fado viveu
Vendia flores
Mas os seus amores jamais os vendeu
Ó Júlia florista, tua linda história
O tempo marcou na nossa memória
Ó Júlia florista, tua voz ecoa
Nas noites bairristas
Boémias fadistas da nossa Lisboa
Chinela no pé
Um ar de ralé no jeito de andar
Se a Júlia passava
Lisboa parava pra a ouvir cantar
No ar um pregão
Na boca a canção, falando de amores
Encostado ao peito
A graça e o jeito do cesto das flores
Ó Júlia florista, tua linda história
O tempo marcou na nossa memória
Ó Júlia florista, tua voz ecoa
Nas noites bairristas
Boémias fadistas da nossa Lisboa
Ó Júlia florista, tua voz ecoa
Nas noites bairristas
Boémias fadistas da nossa Lisboa
8) Lisboa Oxalá (com Carminho)
Autores: Nuno Júdice / Joaquim Campos
Tal qual esta Lisboa, roupa posta à janela
Tal qual esta Lisboa, roxa jacarandá
Sei de uma outra Lisboa, de avental e chinela
Ai Lisboa fadista, de Alfama e oxalá
Lisboa lisboeta, da noite mais escura
De ruas feitas sombra, de noites e vielas
Pisa o chão, pisa a pedra, pisa a vida que é dura
Lisboa tão sozinha, de becos e ruelas
Mas o rosto que espreita, por detrás da cortina
É o rosto d'outrora feito amor feito agora
Riso de maré viva numa boca ladina
Riso de maré cheia num beijo que demora
E neste fado deixo esquecido aqui ficar
Lisboa sem destino, que o fado fez cantar
Cidade marinheira sem ter que navegar
Caravela da noite que um dia vai chegar
9) Pontas soltas (com Ricardo Ribeiro)
Autores: Maria do Rosário Pedreira / Joaquim Campos
Dizem que já não me queres
Que há outro na tua vida
E que é dele que tu gostas
São as línguas das mulheres
Que vinham lamber-me a ferida
Se me virasses as costas
Se eu não levo isso a peito
Nem olho para a desdita
Como coisa que se veja
Tu tens de perder o jeito
De ser sempre a mais bonita
E despertar tanta inveja
Dizem que já me enganaste
Soprando no meu ouvido
Fados de rara beleza
Não sei se me atraiçoaste
Mas eu senti-me traído
Mesmo sem ter a certeza
Nada disto acontecia
Se desses as tuas voltas
Sempre, sempre, ao meu redor
Tens de perder a mania
De deixar as pontas soltas
Na história do nosso amor
10) Fado do 112 (com Marco Rodrigues)
Autores: Júlio Pomar / Armando Freire
Sem capricho ou presunção
Nesta torre de papel
Deita sete olhares de mel
Em metade de um limão
Na noite mais traiçoeira
Ruim, medonha, brutal
Descontada a pasmaceira
Do inferno do normal
Se me vires a cara séria
Juiz, togado ou em fralda
A julgar faltas, à balda
Num tribunal multimédia
E tomado o pensamento
Por rombo, machado ou moca
Pega no laser da moda
Dou-te o meu assentimento
Se me vires, por fraqueza
Por perfídia ou aflição
Mergulhado na tristeza
Com que se mói a razão
E servi-la à sobremesa
Das ceias da frustração
Assentado na baixeza
O programa da nação
Por favor peço-te só
Não te demores, vem logo
Traz gasolina, põe fogo
Meu amor, não tenhas dó
11) Nasceu assim, cresceu assim (com Mafalda Arnauth)
Autores: Vasco Graça Moura / Fernando Tordo
Talvez a mãe fosse rameira de bordel
Talvez o pai um decadente aristocrata
Talvez lhe dessem à nascença amor e fel
Talvez crescesse aos tropeções na vida ingrata
Talvez o tenham educado sem maneiras
Entre desordens, navalhadas e paixões
Talvez ouvisse vendavais e bebedeiras
E as violências que rasgavam corações
Talvez ardesse variamente em várias chamas
Talvez a história fosse ainda mais bizarra
No desamparo teve sempre duas amas
Que se chamavam a viola e a guitarra
Pois junto delas talvez já o reconheçam
Talvez recusem dar-lhe o nome de enjeitado
E mesmo aqueles que o não cantam não esqueçam
Nasceu assim, cresceu assim, chama-se Fado
12) Calçada à portuguesa (com Cristina Branco)
Autores: José Luís Tinoco / Ivan Lins e José L.Tinoco
Acendem-se os olhos do dia
Um sol feito de água e janelas
Nas ruas e praças, na cal e nas pedras
No cais que abrigou caravelas
Do alto das tuas muralhas
É todo o teu corpo que eu vejo
Vestido de claro, de azul e gaivotas
E os olhos no espelho do Tejo
Ai céu que encandeia os meus olhos
Ai estrelas nos olhos do dia
Ai margens que nos contam histórias
Do mar que ninguém conhecia
Ai naus de aventura
Com anjos na proa
Nos portos da minha alegria
No chão feito de preto e branco
Da calçada à portuguesa
Demoro o olhar, escrevo o teu nome
De dona do mar e princesa
Ai naus de aventura
Com anjos na proa
É assim que te vejo, Lisboa
13) Loucura (Sou do fado) (com Lucília do Carmo)
Autores: Júlio Campos de Sousa / Frederico Brito
Sou do fado
Como sei
Vivo um poema cantado
De um fado que eu inventei
A falar
Não posso dar-me
Mas ponho a alma a cantar
E as almas sabem escutar-me
Chorai, chorai
Poetas do meu país
Troncos da mesma raiz
Da vida que nos juntou
E se vocês
Não estivessem a meu lado
Então não havia fado
Nem fadistas como eu sou
Esta voz tão dolorida é culpa de todos vós
Poetas da minha vida
É loucura, oiço dizer
Mas bendita esta loucura de cantar e de sofrer
Chorai, chorai
Poetas do meu país
Troncos da mesma raiz
Da vida que nos juntou
E se vocês
Não estivessem a meu lado
Então não havia fado
Nem fadistas como eu sou